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O galo da Bela Vista

*Este conto é baseado em fatos reais.

Ele canta de dia, no meio da madrugada, às vezes no cair da tarde. Desde que chegou à grande cidade, perdeu seu timing. Quem lhe ensinou a palavra estrangeira, aliás, foi um cão de raça, freqüentador do parque onde vive o galo Nono Garibaldi desde que deixou a roça.

Mal aportou na metrópole - e este é outro termo que aprendeu na nova fase -, o galináceo já mudou de hábitos. (Tanto é que ampliou o vocabulário.) Aprendeu, na marra, alguns macetes para garantir a sobrevivência. Acostumou-se à dura realidade: num mundo tão competitivo, é preciso matar um leão por dia, como os mais civilizados falam. E ele, que sempre acreditou ser o mais forte na sua sociedade, agora tinha de provar sua majestade a cada minuto nessas novas paragens.

"Como era feliz a vida no campo, naquele sítio em Monte Alegre...", suspirava Garibaldi. Tudo aconteceu muito rápido. Uma hora estava cuidando da família (esposas, filhos, netos), papeando com os amigos. De repente, não via nada - era uma caixa escura, apertada, e do lado de fora parecia ocorrer um terremoto. Quando voltou à luz, estava num lugar barulhento e movimentado. O ar cheirava mal. No céu, só se via cinza. Seu teto havia virado uma ponte. Ele mora, então, no Parque localizado debaixo do Viaduto da Nove de Julho, uma importante avenida da capital, logo lhe contaram. Soube que o bairro se chama Bela Vista, e achou uma piada.

Seu dono atual, que lhe tirou do seu hábitat, é o zelador do tal parque. E, por mais perverso que tenha sido em retirar alguém de sua própria casa, não é exatamente uma pessoa perversa. Nas primeiras vezes em que conversou com Nono, explicou-se dizendo que havia feito o que fez porque sentia muita falta da época da infância - o homem nascera na zona rural, e a abandonou muitas décadas atrás. Por isso, numa visita à terra natal (por coincidência, a mesma de Garibaldi), teve a idéia de raptá-lo. Viu naquele bom galo a oportunidade de relembrar e reviver os tempos calmos, áureos.

Construíram uma relação sem mágoas. Viraram amigos, companheiros de melancolia. O zelador e o galo passaram a partilhar os colegas de bocha e dominó que freqüentavam o espaço. Havia ainda a animação dos grupos de capoeira e de ginástica taissô... O caminhar dos esportistas, de certa forma sincronizado com os ônibus e os carros apressados... A inocência da criançada a brincar no playground...

O único problema são mesmo as cordas vocais de Nono Garibaldi, que agora parecem ter vontade própria, teimosas. A voz foge ao seu controle, e se solta sem hora marcada. Uma espécie de distúrbio, talvez estresse, disse um veterinário. No entanto, há um único momento em que, é certo, ele sempre canta: assim que o Sol nasce. (Parece que está no sangue anunciar o dia.) Mas é um canto estranho, choroso. Um canto de saudade.

Quinta-feira, Junho 01, 2006