[voltar]

Estranho

Essa mania, desde menina, de abrir a porta para estranhos. Pra fazer sala, já bota a visita pra sentar, serve cafezinho, puxa conversa - "Você é de onde?" Assim que tem a resposta, se sente à vontade para ir se contando - "Minha família blá, eu estudei blá, meu trabalho blá, um dia quem sabe blá." Pronto. Lá se foram passado, presente e planos. Nada de panos quentes. Ou máscaras, ou meias-palavras, ou jogo. Tudo se fala, se mostra, nada se esconde. De repente se vê como que nua, desprotegida, entregue ao cúmulo. O bendito acúmulo de fé na boa-vizinhança, na bondade, no puro. Exposta, enxerga só os pés do outro, os sapatos estão sujos, há pegadas no caminho, mas não se sabe a origem nem o destino. Já é tarde e está escuro. Não é de bom-tom mandar visitante embora, põe a vassoura atrás da porta, mesmo não acreditando. Não pode crer que mais uma vez errou no prognóstico. É sempre uma aposta, varia o lance. Nessas de querer ver pra crer, viciou-se. Não consegue ser imparcial, não é do seu feitio. Tem horror ao que é neutro, superficial, morno. "Se faço tipo de blasé pode saber que sou um corpo morto." Mas o fato é que morre um pouquinho a cada passo em falso. E continua caminhando.

Quarta-feira, Julho 27, 2005